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Uma proposta de novo Código Comercial

O Brasil precisa de um Código Comercial ou ele é desnecessário devido à unificação do direito privado pelo Código Civil de 2002?

Um novo Código Comercial é imprescindível, como demonstrarei a seguir; antes, porém, cumpre enfrentar o argumento de que o direito privado foi unificado.

Os que sustentam haver o Código Civil absorvido toda a matéria mercantil não leram a exposição de motivos do supervisor da comissão revisora e elaboradora do Código Civil, Miguel Reale.

De início, ao enunciar as “diretrizes e os princípios fundamentais do futuro código”, o professor Miguel Reale destaca, em itálico, que ele será a “lei básica, mas não global, do direito privado”. Logo após, ao cuidar da “estrutura e espírito do anteprojeto”, afirma: “Em primeiro lugar, cabe observar que, ao contrário do que poderia parecer, não nos subordinamos a teses abstratas, visando a elaborar, sob a denominação de “Código Civil”, um “Código de Direito Privado”, o qual, se possível fora, seria de discutível utilidade e conveniência”, e, adiante, assegura: “Não há, pois, falar em unificação do direito privado a não ser em suas matrizes, isto é, com referência aos institutos básicos”, para, afinal, arrematar: “… não nos tentou a veleidade de traçar um “Código de Direito Privado”.

O Código Civil não regulou típicos e frequentíssimos contratos mercantis

Se não houve a unificação do direito privado, teria havido, pelo menos, a unificação do direito das obrigações?

Rubens Requião, em conferência proferida em 13 de agosto de 1975 perante a comissão especial do Código Civil, na Câmara dos Deputados, em candente crítica ao anteprojeto, nega, com veemência, que tenha havido o que a citada exposição de motivos, em seu item 10, denominou de “unidade do direito das obrigações”.

Sob o enfático título “O fracasso da unificação”, o professor Requião explica, com a inconteste autoridade de consagrado mestre de direito comercial: ” Nossa crítica inicial, por isso, se dirige à estrutura básica do Projeto… Muita matéria privatista, com efeito, escapa de seu plano. Consiste a unificação, isto sim, na simples justaposição formal da matéria civil ao lado da matéria comercial, regulada num mesmo diploma. Constitui, repetimos, simples e inexpressiva unificação formal. Isso, na verdade, nada diz de científico e de lógico, pois, na verdade, como se disse na exposição de motivos preliminar, o direito comercial, como disciplina autônoma, não desaparecerá com a codificação, pois nela apenas se integra formalmente. O artificialismo desse critério criou no projeto a preocupação de proscrever o adjetivo “comercial” ou “mercantil”.

Dirigindo-se ao presidente da comissão, deputado Tancredo Neves, pondera: “Senhor Presidente, a unificação dos Códigos já surgiu, entre nós, natimorta. O Projeto em várias oportunidades se descarta da unificação e, mesmo, da codificação, remetendo a regulação de certos institutos para “a lei especial”, sem motivos de ordem técnica e regulamentar.”

De fato, não houve sequer a unificação do direito das obrigações porque o Código Civil não regulou típicos e frequentíssimos contratos mercantis, como, apenas para exemplificar, os de: representação comercial, alienação fiduciária em garantia, gestão de negócios, penhor mercantil, conta corrente, operações bancárias, comércio exterior, arrendamento mercantil (leasing), faturização (factoring), franquia (franchising), know how, cartão de crédito, enfim, os contratos de massa, comerciais por excelência, que obrigaram à adoção de uma nova técnica, repudiada pelos civilistas: o contrato de adesão.

Em verdade, após a doutrina pátria e alienígena haver se debruçado sob a chamada “comercialização do Direito Civil”, a partir da advertência do alemão Riesser, em 1894 e, ao longo do século passado, sob a denominada “generalização do direito comercial”, outro fenômeno, de consequências ainda maiores, surgiu: o fenômeno universal da “publicização do direito”, fruto de uma longa evolução, que começa no capitalismo comercial, passa pelo capitalismo industrial e, depois, financeiro, em que o direito é um instrumento a serviço da consecução dos fins econômicos e sociais do Estado.

Diante das imensas repercussões do dirigismo econômico e da intervenção do Estado na vida das pessoas e das empresas, o professor Antunes Varela viu-se compelido a afirmar que “esse novo Estado militante, que faz valer suas prerrogativas,” provocou o “estouro das muralhas que separavam o direito público do direito privado”. A mim me leva a aduzir: esse Estado intervencionista provocou o deslocamento do direito comercial do direito privado em direção ao direito público, nele, todavia, não se inserindo, mas ficando numa posição intermediária entre o direito público e o direito privado, transformando-se em um direito semipúblico, com método, espírito e objeto próprios, distintos dos do direito civil. Portanto, na mesma categoria do direito econômico, daí dever-se pensar no surgimento de um novo direito comercial, capaz de responder aos reclamos e anseios e necessidades de uma sociedade pós-industrial, na qual o Código Comercial não é apenas o meio adequado para mediar as relações entre produtores e consumidores, mas um conjunto sistemático de princípios e regras capaz de ordenar o mundo dos negócios resultante das profundas e irreversíveis mutações políticas, econômicas e sociais vividas pelo país desde 1850, data da promulgação do revogado Código Comercial.

Jorge Lobo é mestre em direito da empresa pela UFRJ, doutor e livre docente em direito comercial da UERJ 

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

Veículo: Valor – 04/05/2011