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Relações sociais e institucionais no IFRS

As empresas, qualquer que seja seu tipo societário e seu porte, mantêm relações jurídicas com diversos públicos (stakeholders), como bem apresentado pela teoria contratual da firma. Além dos evidentes contratos celebrados com os sócios (acionistas ou quotistas) e com os administradores, as empresas celebram, cotidianamente, acordos na esfera privada, como são os casos dos fornecedores e dos clientes, e na esfera pública, cujos exemplos são os trabalhadores, os órgãos reguladores do Estado e a coletividade de uma maneira geral. Assim, como nos contratos interna corporis (relação societária) e nos de natureza privada (relação mercantil), também nas relações sociais (trabalhistas) e nas relações institucionais (reguladoras) as demonstrações financeiras são um destacado instrumento de manutenção, garantia e execução de direitos; o que implica diversos impactos jurídicos da adoção do padrão internacional de contabilidade (IFRS), ocorrida no Brasil a partir da Lei nº 11.638, de 2007, com a disciplina contábil ditada pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis – CPC.

No que diz respeito às relações trabalhistas, as demonstrações contábeis destinam-se, dentre outras coisas, a informar os empregados da empresa sobre a situação econômico-financeira da sua fonte de emprego e renda, além da capacidade de absorver mais mão de obra ou de, ao menos, garantir os pontos de trabalho já criados. A mais importante utilização da contabilidade nas relações de emprego talvez seja para o acordo de participação dos trabalhadores nos lucros ou resultados da empresa – PLR, tal como disciplinado pela Lei nº 10.101, de 2000. A começar pelos “mecanismos de aferição das informações pertinentes ao cumprimento do acordado” (artigo 2º, parágrafo 1º da Lei n° 10.101, de 2000), a relevância do julgamento da administração, característica fundamental dos IFRS, exige não só a divulgação dos números, mas a sua clareza na explicação dos critérios adotados para a elaboração das demonstrações contábeis.

Deve ser ressaltado que a lucratividade não é o único critério que as empresas estão autorizadas a adotar para a definição dos valores devidos a título de PLR, podendo ser utilizados, dentre outros, “índices de produtividade” e “programas de metas” (artigo 2º, parágrafo 1º, I e II da Lei nº 10.101, de 2000). Se considerada a lucratividade, os mesmos lançamentos contábeis que influenciam na formação dos dividendos impactaram a remuneração dos empregados. Ocorre que, mesmo o acordo considerando o faturamento como critério para o PLR, o julgamento da administração será decisivo para a definição do valor devido aos trabalhadores, especialmente em empresas que atuem no setor de incorporação imobiliária e de concessão de serviços públicos.

As demonstrações financeiras são garantias e execuções de direito

Aliás, neste último caso, verificam-se impactos dos IFRS em relações jurídicas públicas e coletivas, como é o caso do contrato triangular entre o Estado (titular do serviço público), a concessionária (prestadora, por delegação, do serviço público) e o usuário do serviço público. A fixação e o reajuste da tarifa dos serviços públicos concedidos, normalmente, tomam por base informações contábeis; considerando que importantes contratos administrativos de concessão de serviço público foram firmados à época da vigência do texto original da Lei nº 6.404, de 1976 – LSA, no tocante às demonstrações financeiras, a adoção dos IFRS provoca profundas alterações na execução das cláusulas desses contratos administrativos, inclusive na determinação da tarifa; por esse motivo, os órgãos reguladores das concessões de serviços públicos não adotam integral e incondicionalmente os IFRS como padrão da “contabilidade regulatória”, e isso com fundamento no artigo 177, parágrafo 2º da LSA, com a redação dada pela Lei nº 11.941, de 2011. Veja-se o exemplo da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) por meio da Resolução Normativa nº 396, de 2010, foi instituída a contabilidade regulatória, sendo mantida a obrigatoriedade de diversos documentos específicos, como a Estrutura do Plano de Contas, as Instruções Contábeis e o Manual de Contabilidade do Setor Elétrico – MCSE (artigo 2º da RN Aneel nº 396, de 2010).

Como se vê, os impactos jurídicos da adoção dos IFRS não se limitam ao conflito de agência, isto é, à relação entre os proprietários e os gestores das empresas. Praticamente todos os usuários da contabilidade (stakeholders) sofrem os efeitos do julgamento da administração. Tais impactos jurídicos são sentidos, inclusive, nas relações de ordem pública da empresa

Este é o terceiro artigo de uma série de cinco sobre os impactos das novas normas contábeis

Edison Carlos Fernandes é advogado, doutor em direito pela PUC-SP, professor da Universidade Mackenzie e da FGV (GVLaw, GVPEC e GVManagement) e autor do livro “Demonstrações financeiras: gerando valor para o acionista”.

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

Veículo: Valor – 30/11/11