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Um número relevante de processos julgados, recentemente, sob a sistemática dos recursos repetitivos pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) parece ter saído das mentes dos idealizadores do popular filme Matrix. Revelam a existência de uma realidade perfeita, mas irreal, que seria aquela prevista na legislação que trata desses recursos, e de outra real e sombria, que é a prática efetivamente observada pelo tribunal.
Grosso modo, nos recursos repetitivos, o STJ escolhe casos-modelo que servem como parâmetro para a solução de uma matéria tratada em inúmeros outros processos. Decidido o caso-modelo, todos os demais são posteriormente julgados seguindo o mesmo entendimento. Tudo no intuito de conferir rapidez, uniformidade e segurança às decisões.
Portanto, a decisão tomada em um recurso repetitivo transcende o interesse das partes específicas do caso-modelo. Por conta disso, a lei diz expressamente que um processo, para ser representativo da controvérsia, deve reunir a maior diversidade de fundamentos e de argumentos sobre a matéria tratada. O relator também pode admitir a manifestação de qualquer pessoa com interesse na matéria, sempre com o objetivo de que exista uma maior abrangência de argumentos, evitando omissões que poderiam arrastar a discussão. Essa é a realidade virtual emanada do artigo 543-C do Código de Processo Civil (CPC) e da Resolução STJ nº 08, de 2008.
Diversos recursos repetitivos, especialmente em matéria tributária, têm sido julgados sem abordar boa parte dos argumentos jurídicos fundamentais. Em alguns casos, chegou-se ao absurdo de submeter à sistemática dos repetitivos um processo em que um dos interessados sequer se manifestou. Essa escolha pouco criteriosa tem levado o STJ a proferir julgados inconsistentes. Eis a realidade real e sombria.
No REsp nº 1.042.585, o tribunal entendeu que a falta de entrega de determinada declaração (o que não necessariamente implica na falta de pagamento do tributo) seria impeditivo para a expedição de Certidão Negativa de Débito (CND). Nesse julgamento, o STJ sequer menciona os artigos 205 e 206 do Código Tributário Nacional (CTN), que versam exatamente sobre a CND e caracterizam-na como documento para a comprovação da quitação de débitos. Se a CND serve para atestar a quitação dos débitos do contribuinte, por que uma situação que não equivale a um débito (não entrega de declaração) pode impedir a sua expedição?
No passado, as decisões do STJ continham 15 a 20 páginas de intensa produção intelectual. Podia-se não concordar com o desfecho, mas havia a certeza de que tudo fora analisado, sopesado e julgado.
Atualmente, as decisões, quando muito, possuem 15 parágrafos. Não há como ignorar o declínio qualitativo, que culmina com as situações aqui apontadas, especialmente quando se trata de um julgamento sob a modalidade leading case, com aplicação direta sobre todas as demais causas.
A pretexto de dar celeridade ao processo judicial, não se pode admitir julgamentos incompletos, pouco debate e um tribunal inacessível a argumentos relevantes para a solução das matérias julgadas nos recursos repetitivos. A celeridade é desejável, sem que a sociedade pague o terrível preço da perda de qualidade. Afinal, antes de tudo o que se quer é justiça.
Veículo: Valor – 04/02/2011