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Veja o artigo do procurador da Fazenda Nacional em São Paulo James Siqueira publicado no jornal Valor Econômico, edição de 9 de julho de 2019.
Por James Siqueira*
O apelo é à simplificação. Saem de cena cinco tributos – ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins -, que cedem lugar a um único, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Abandona-se um arranjo labiríntico, caro e disfuncional, evoluindo-se para um modelo linear, com menor custo de conformidade e eficiente.
Mais tentador, impossível.
Há pouco foi aprovada na Comissão de Constituição de Justiça da Câmara dos Deputados a PEC 45/2019, que reacende o debate sobre a reforma tributária. Com um discurso bastante articulado e sedutor, os idealizadores do projeto vêm realizando um “roadshow” por todo o país. Buscam adeptos ao sinalizarem que a reforma impulsionará o crescimento econômico e que as decisões empresariais terão uma nova racionalidade (econômica, não mais fiscal). Com o avanço da PEC na Câmara, a hora seria agora, até porque cavalo encilhado não passa duas vezes.
Oxalá, mas melhor entender que cavalo é esse antes de montar.
Ao reunir ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins sob o mesmo guarda-chuva, a PEC 45/2019 segue uma tipologia exclusivamente econômica que parece não levar em conta a assimetria existente entre os tributos que recaem direta ou indiretamente sobre a produção e o consumo.
Incidindo diretamente sobre mercadorias e serviços, ICMS, ISS e IPI são tributos que estão perfeitamente em linha com o arquétipo do IBS. O mesmo não pode ser dito em relação ao PIS e à Cofins, cuja base de incidência é bem mais universal: o dinheiro que entra.
Quem contabiliza receita ou faturamento se expõe ao PIS e à Cofins. Mais: independentemente da circunstância de comercializar mercadorias ou prestar serviços. Do pequeno varejista ao grande industrial, passando pela mais descolada “fintech”, todos pagam PIS e Cofins. Sob diferentes regimes jurídicos (cumulativo, não cumulativo e Simples), mas todos pagam. Como é natural inferir, quão maior for a receita ou o faturamento de uma empresa, maior será sua participação no custeio do sistema.
Pois bem. Querendo romper com a opressão fiscal que recai sobre empresas, a PEC 45/2019 promete uma transição lenta, gradual e segura. Com uma mão, elimina gradativamente aqueles cinco tributos, destacadamente o PIS e a Cofins (erodindo a receita e o faturamento como bases tributárias); com a outra, garante a manutenção do fluxo da arrecadação dos entes federativos via IBS.
E aqui se abre o ventre do Cavalo de Troia.
A equação seria ginasiana se todos os atuais contribuintes do PIS e da Cofins fossem projetados como virtuais contribuintes do IBS. Todavia, como se viu, nem toda empresa que contabiliza receita ou faturamento desempenha atividades voltadas à comercialização de produtos ou prestação de serviços.
Para ficar em um único exemplo, tomem-se as empresas de participação, as chamadas holdings. Hoje elas estão sujeitas a PIS e Cofins, ainda que não sejam prestadoras de serviços ou afins.
Alguém dirá: no bolo, essa tributação é irrelevante, porque a carga tributária sobre holdings é baixíssima. E, ao dizê-lo, talvez até tenha razão, se o racional for apenas arrecadatório.
O ponto é mais profundo. Começa no temperamento que se dá ao postulado da justiça fiscal e desemboca na mensagem enviesada dirigida ao corpo da sociedade. Essas empresas, que já não pagam IR e CSLL sobre lucros e dividendos, serão completamente desoneradas quando o PIS e a Cofins forem extintos? Pior: mantida a promessa de se garantir a arrecadação do PIS e da Cofins via IBS, quem pagará a conta pelo que deixar de ser tributado das holdings?
Mas para quem vê na métrica arrecadatória o melhor, senão o único, critério de relevância, é preciso dizer que a PEC 45/2009 introduz um limiar até aqui pouco debatido: a concreta possibilidade de os futuros contribuintes do IBS assumirem toda a carga tributária que hoje pesa sobre a receita e o faturamento das instituições financeiras.
A PEC 45/2019 deixa de abarcar os serviços bancários ou de intermediação financeira. Sim, os bancos, que hoje são contribuintes superlativos de PIS e da Cofins, não se projetam como contribuintes potenciais do futuro IBS.
Não se trata de mero palpite. Além de os serviços de intermediação financeira não se coadunarem com nenhuma das modalidades de serviços descritas no art. 152-A, §1º, da PEC 45/2019 – o que, tecnicamente, não deixa espaço para serem mencionados na lei complementar que dará tônus ao novo modelo -, os idealizadores do IBS conscientemente os excluíram da base do novo tributo. Argumentam que, afora na Nova Zelândia, os impostos sobre valor agregado não contemplam serviços bancários e que, se incluíssem as instituições financeiras no IBS, a alíquota e o “spread” bancário seriam majorados.
Na prática, transmite-se ao consumidor final – o verdadeiro contribuinte do IBS – a incumbência de garantir a manutenção dos fluxos atuais de arrecadação originados do PIS e da Cofins, inclusive a parcela multibilionária paga pelas instituições financeiras. É uma decisão política e economicamente válida, sem dúvida, mas que merece escrutínio público.
O que está na mesa é a tomada de posição entre valores concorrentes: os imperativos da justiça fiscal contrapostos à simplificação tributária. Mas, para além da discussão teórica, a “realpolitik” se impõe. Está claro para a sociedade quem pagará a conta pela desoneração de bancos e afins? Ou a promessa de reposição de arrecadação via IBS é apenas programática? Isso faz sentido? Quem ganha?
*James Siqueira é procurador da Fazenda Nacional em São Paulo