O presidente Luiz Inácio Lula da Silva volta de sua longa viagem ao exterior com um problema urgente para resolver: Vetar – como propõe o Ministério da Justiça – ou promulgar – como defende o Banco Central, o artigo 78 do projeto de conversão em lei da MP 449, aprovado pelo Congresso, que trata da renegociação de dívidas tributárias dos contribuintes da União. O dispositivo, que ganhou a alcunha de “Emenda Cacciola”, dá uma verdadeira “carta branca” aos ministros de Estado, ao presidente do Banco Central e a outros agentes públicos “incumbidos da execução de medidas excepcionais” destinadas a “assegurar liquidez e solvência do Sistema Financeiro Nacional, de regular o mercado de câmbio e de capitais e de resguardar os interesses de depositantes e investidores”. Eles ficariam isentos da prática de qualquer crime, com base na “exclusão de ilicitude”, prevista no artigo 23 do Código Penal.
O deputado Flávio Dino (PCdo B-Maranhão), que foi juiz federal, já tem pronto o esboço de uma ação de inconstitucionalidade a ser ajuizada no Supremo Tribunal Federal por seu partido, caso o presidente Lula promulgue a lei resultante da MP 449 tal como está. “Nunca vi uma coisa dessas: exclusão da ilicitude de determinadas condutas por atacado, sem exame pelo Judiciário de caso a caso”, comenta o parlamentar. O projeto a ser convertido em lei poderia vir até a beneficiar o ex- dono do Banco Marka, Salvatore Cacciola, que se encontra preso, depois de extraditado pelo Principado de Mônaco, respondendo a ação penal por crimes contra o sistema financeiro. Ele não é agente público, mas seu banco foi beneficiário de “medidas excepcionais” como as referidas no artigo 78 do projeto a ser convertido em lei.
Na última quinta-feira, o ministro da Justiça, Tarso Genro, enviou à Casa Civil da Presidência da República uma exposição de motivos, com sugestões para o veto parcial do projeto, a fim de que não haja possibilidade de “anistia” para casos análogos ao de Cacciola. Mas o assunto está sendo tratado sigilosamente, tanto no Ministério da Justiça como na Advocacia-Geral da União.
A base da eventual ação a ser proposta no STF pelo PCdoB está no artigo 62, parágrafo 1º da Constituição: “É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria relativa a direito penal, processual penal e processual civil”. Ao tratar da “exclusão de ilicitude”, a chamada Emenda Cacciola entra na seara do Código Penal, que assim define esse tipo de “exclusão”. “Não há crime quando o agente pratica o fato em estado de necessidade; em legítima defesa; em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”. Neste caso, o agente só é punível quando houver “excesso doloso ou culposo”.
A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), por sua vez, aprovou “nota técnica” sobre o assunto – já enviada ao ministro da Justiça, à chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff e ao advogado-geral da União, José Antonio Toffoli – na qual também considera direito penal e medida provisória “conceitos inconciliáveis”.
Ainda conforme a manifestação da Ajufe – que pede o veto total do artigo 78 do projeto de lei – “se criar crime representa uma atividade que exige reflexão e ponderação incompatíveis com a urgência que caracteriza as medidas provisórias, o mesmo se pode dizer da determinação de perdão que caracteriza a anistia”. E lembra que, no caso da anistia, “o constituinte foi igualmente claro, ao dizer que cabe ao Congresso Nacional a concessão da anistia (inciso 8 do artigo 40 da Carta), afastando, portanto, de modo cabal, a ingerência do Poder Executivo neste assunto”..
“Neste contexto, é inconstitucional o aditamento feito à MP 449/08, em seu art. 78, que, inobstante finalidades razoáveis que possa ter, concede, na prática, anistia aos ”agentes públicos incumbidos da execução de medidas excepcionais com o propósito de assegurar liquidez e solvencia ao Sistema Financeiro Nacional” (.) – está ainda na nota. Outra inconstitucionalidade destacada pela Ajufe é que a Carta de 1988 “estabelece nitidamente que os agentes públicos devem responder pelos danos que causarem à terceiros”.
A “nota técnica” da Ajufe conclui: “Além das inconstitucionalidades – por si só uma motivação mais que palpável para que seja vetado este aditamento pelo presidente da República – o referido aditamento abre um precedente perigoso para o Estado Democrático de Direito, ao alargar os poderes do Poder Executivo para abarcar o circulo restrito do tratamento do direito penal e, pela vagueza e indeterminação de sua redação, dá margem à possibilidade de elaboração de teses jurídicas penais que poderão implicar em impunidade generalizada, a começar dos pedidos, que certamente virão, de aproveitamento das brechas trazidas pelo texto para co-réus dos ”agentes públicos incumbidos da execução de medidas excepcionais”.
Veículo: Gazeta Mercantil