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Recentemente, o operário Dennis Davis parou na loja de equipamentos para caça e pesca Cabelas de Hamburg, no Estado americano da Pensilvânia, para comprar um estojo de US$ 90 para a pistola Contender de cano longo que usa para matar marmotas importunas na fazenda do seu irmão. Davis pagou com o cartão de crédito da própria loja.
O governo americano ajudou a financiar a transação. No início do ano, injetou quase US$ 400 milhões em financiamento público nas operações de cartão de crédito da Cabelas, varejista de equipamentos para caça e pesca com sede em Nebraska.
Davis ficou surpreso ao saber da ajuda governamental, e não gostou nada. “Qualquer coisa em que o governo federal, ou qualquer governo, mete o nariz vai fracassar ou piorar”, disse ele, enquanto caminhava pelo estacionamento com o filho. Verdade ou não, é inegável que o governo dos Estados Unidos conseguiu penetrar nas engrenagens do dia-a-dia do capitalismo americano.
Desde o início da crise financeira, há nove meses, o governo tornou-se o maior financiador de hipotecas do país, garantiu quase US$ 3 trilhões em ativos de fundos do mercado monetário, forçou a reestruturação judicial de duas montadoras de automóveis, assumiu participação em quase 600 bancos, emprestou mais de US$ 300 bilhões para grandes empresas, deu apoio ao setor de seguros de vida e tornou-se uma fonte de financiamento para compradores de carros, tratores e até armas de caça.
Os efeitos estão se fazendo sentir em nichos da economia americana muito distantes de Wall Street e da combalida indústria automobilística de Detroit. A intervenção maciça causou diversas modificações na maneira como as empresas fazem negócios – nem todas previstas pelo governo. Cada vez mais, empresas grandes e pequenas estão competindo com base na sua capacidade de obter dinheiro do governo. E está-se abrindo uma divisão entre as que conseguem e as que não.
Graças a empréstimos públicos, a Cabelas não precisou cortar o crédito aos seus clientes. A Genworth Financial Inc., uma grande seguradora, não conseguiu receber dinheiro do resgate financeiro, e aumentou o capital de outras maneiras, tais como cortando os dividendos. Mas há também outras firmas que esperam obter vantagem ficando longe do governo. O banco UMB Financial Corp., de Kansas City, Missouri, está tentando atrair novos clientes afirmando com orgulho que não recebeu dinheiro algum do pacote de socorro.
Em relação ao produto interno bruto, os gastos públicos subiram a níveis não vistos desde a Segunda Guerra Mundial. Esse jorro de dinheiro transformou Washington em um destino essencial para um número cada vez maior de empresas.
O presidente Barack Obama prometeu reduzir o papel do governo no setor privado assim que possível. Ben Bernanke, presidente do Federal Reserve, o banco central americano, diz que a maior parte dos programas de emergência lançados pela entidade vão chegar ao término dentro de alguns anos. Mas uma pesquisa recente feita pelo Wall Street Journal com economistas constatou que apenas 16% acreditam que o governo americano conseguirá atingir sua meta de terminar os programas de socorro em breve sem alterar de maneira fundamental a situação da concorrência no setor privado.
A intervenção ajudou a estabilizar a economia, mas pode reduzir o crescimento no longo prazo. Alguns economistas e executivos temem que a intervenção resulte em novas normas que venham a tolher a maneira como algumas empresas operam, e que acabe sustentando firmas “zumbi”, improdutivas, e jogando sobre a próxima geração o fardo de dívidas ou inflação.
Lawrence Summers, principal consultor econômico de Obama, diz que o governo interferiu no setor privado com prudência. Tanto a Casa Branca atual, dominada pelo Partido Democrata, como a anterior, republicana, afirmaram que sem uma intensa reação do governo o país poderia ter enfrentado um desastre econômico da escala da Grande Depressão.
“Nossa abordagem de intervenção em empresas específicas é reconhecer que é preciso fazer aquilo que é absolutamente necessário, mas também reconhecer que é absolutamente necessário não fazer nada mais do que se precisa”, diz Summers.
A crise econômica, que começou com uma turbulência nos mercados de financiamento imobiliário, alcançou muitas outras empresas quando outros mercados de crédito congelaram. Em março o braço financeiro da Cabelas tinha US$ 250 milhões em dívidas atreladas a cartões de crédito da loja prestes a vencer. Mas os investidores já não tinham muito apetite por novos papéis lastreados por recebíveis de cartão de crédito, que era a maneira como a Cabelas em geral cobria essas obrigações.
O Fed e o Departamento do Tesouro forneceram quase US$ 400 milhões para as operações de cartão de crédito da Cabelas, por meio de um programa destinado a reanimar o mercado de crédito pessoal – a Linha de Crédito para Títulos Lastreados em Ativos a Prazo (Talf, na sigla em inglês). O programa empresta dinheiro para que investidores comprem títulos lastreados em recebíveis de cartão de crédito e outros empréstimos a pessoas físicas.
“Se nós não tivéssemos conseguido refinanciar essa (dívida), teríamos reduzido maciçamente os limites de crédito e cancelado cartões”, diz o diretor financeiro da Cabelas, Ralph Castner.
A perspectiva de mergulhar as mãos em baldes de dinheiro público acirrou a concorrência em muitos setores. No de equipamentos agrícolas, por exemplo, a aquisição feita pela Deere & Co.s de um fundo de poupança, alguns anos atrás, a qualificou, em dezembro, a obter garantia governamental para US$ 2 bilhões da sua dívida, por meio de um programa da Federal Deposit Insurance Corp. (FDIC, a agência de seguro-depósito dos EUA), que ajuda os bancos a acessar os mercados de dívida.
Mas a FDIC não cobria concorrentes como a Caterpillar Inc. ou fábricas menores de equipamentos. Por isso, a Associação de Leasing e Financiamento de Equipamentos pressionou o Fed para que o programa Talf passasse a abranger também a venda de equipamentos agrícolas e outras máquinas. O Fed acabou por ampliar o Talf para cobrir a Deere, a Caterpillar e outros fabricantes de máquinas.
Algumas das empresas mais necessitadas não se qualificam para esse tipo de ajuda. Por lei, os empréstimos do Fed têm de ser bem garantidos, de modo que na maior parte o banco central só pode financiar tomadores com notas de crédito máximas. Isso prejudica algumas firmas de leasing de máquinas menores que não conseguem as classificações elevadas. Elas têm de pagar agora até quatro pontos porcentuais mais do que as empresas com notas de crédito altas para captar – uma diferença três pontos porcentuais maior do que antes da crise, afirmam as firmas.
Summers diz que o governo não está tentando escolher vencedores e perdedores. “É preciso distinguir entre casos emergenciais e políticas mais amplas”, diz. “No caso de políticas mais amplas, o esforço é de definir regras do jogo que afetem todas as empresas, certamente não escolher entre as empresas.”
Toda a disputa por dinheiro deu novo gás à indústria do lobby em Washington. Os gastos gerais com lobby devem atingir este ano os US$ 3,3 bilhões gastos em 2008, de acordo com o Centro para Política Responsável. O total de 2008 representou um aumento de 80% sobre o US$ 1,8 bilhão gasto em 2002, quando as empresas estavam combatendo a Lei Sarbanes-Oxley de contabilidade e governança corporativa.
Veículo: Valor Econômico