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Inclusão financeira, bancarização e juros

Em entrevista no início de março, o ex-presidente da Federação Brasileira da Associação de Bancos (Febraban), Fábio Barbosa, sustentava que a “sociedade precisa escolher entre o desejo de bancarização (a popularização do banco) e o desejo de taxas menores de juros”. Haveria, na opinião de Barbosa, uma incompatibilidade entre as duas coisas na medida em que novos tomadores adentram o mercado, sendo que para estes não há disponibilidade de informação ou histórico adequado, implicando aumento de risco e, por conseguinte, de juros.

Dias depois, o novo presidente da entidade, Murilo Portugal, corroborou o discurso ao afirmar que, “quando os novos clientes abrirem contas em bancos, pode até ser que os spreads cobrados em operações financeiras para eles subam”.

Como é de desejo geral preservar o bom momento pelo qual o país passa, com a conjugação de relativa estabilidade macroeconômica, crescimento e redução de desigualdade, é preciso examinar essa possível incompatibilidade em maior detalhe.

Pesquisas recentes em microfinanças e inclusão financeira trazem à tona pontos relevantes sobre a contribuição do acesso e do uso de produtos e serviços financeiros para o combate à pobreza. Em primeiro lugar, é preciso fazer uma distinção entre bancarização e inclusão financeira. Não se trata aqui de uma mera questão semântica. Em vários países, uma parcela relevante da população tem acesso a serviços e produtos financeiros formais sem estar bancarizada. O exemplo mais conhecido é o que vem do Quênia, onde se desenvolveu uma solução de transferência de recursos por meio do celular (M-Pesa) para quem não é cliente de banco.

No Brasil, uma boa ilustração desse problema é a comparação entre o número total de contas correntes simplificadas abertas e a parcela dessas que pode ser considerada “ativa”, ou seja, que está sendo movimentada. De acordo com os últimos dados disponibilizados pelo Banco Central, a média de contas simplificadas ativas em 2010 (até outubro) foi cerca de 60% do total. Portanto, nem todos os bancarizados podem ser considerados “incluídos” de facto no sistema financeiro. É preciso conceituar adequadamente cada termo, sobretudo para acompanhar sua evolução e impacto para a população de menor renda ao longo do tempo.

Estudos mostram que práticas inovadoras mitigam os riscos de estender crédito para novos tomadores

Voltando à incompatibilidade possível entre inclusão social e redução de juros, diversos estudos e experiências práticas de microcrédito mostram que a adoção de práticas inovadoras permite mitigar os riscos de estender crédito para novos tomadores. Tanto é verdade que o termo microcrédito, tal qual hoje é conhecido, surge a partir dos anos 70, com a introdução de um conjunto de inovações, tais como os mecanismos de empréstimos em grupo, onde cada tomador solidariamente avaliza o crédito dos demais membros. Esse mecanismo tem sido eficiente para a expansão do crédito aos pobres justamente porque esses não dispõem das garantias tradicionalmente exigidas pelos bancos. A formação do grupo solidário inova por materializar uma garantia na forma de controle e pressão dos pares, possibilitando ainda reduzir os custos de transação associados à coleta e processamento de informação.

Outra importante inovação é a presença do agente de crédito que, nos moldes das chamadas finanças da proximidade, mantém um relacionamento intenso com os tomadores, contribuindo para redução da assimetria de informação e, consequentemente, da inadimplência e dos juros.

Ademais, estudos recentes têm mostrado a possibilidade de utilização de “dados alternativos” para modelagem de risco de tomadores sem histórico de crédito. Em pesquisa focando o mercado americano, mostra-se que o uso de dados de consumo de gás, energia elétrica e aluguéis propiciaria incluir no mercado de crédito os excluídos justamente por falta de informação. Além disso, a incorporação dessas informações aos modelos de risco reduz a inadimplência entre 27% e 30%, com potencial efeito redutor sobre os juros.

Para o caso do Brasil, diversas pesquisas realizadas pelo Centro de Estudos em Microfinanças indicam haver espaço para ampliação da oferta de serviços financeiros para os mais pobres através do canal dos correspondentes, hoje predominantemente concentrados em serviços de pagamento e recebimento. Trata-se de uma rede de grande capilaridade e proximidade das regiões carentes. São mais de 100 mil pontos, quantidade cerca de cinco vezes maior do número de agências bancárias tradicionais.

Uma dessas pesquisas investigou especificamente o potencial uso do correspondente como fonte de informação para auxiliar a formação de cadastro positivo. Identificou-se que, dentre outras coisas, a informação do valor, da data de pagamento e de vencimento da conta de energia elétrica poderiam ser utilizadas para estimar a renda do domicílio, para identificar o perfil de pagamento de contas e o perfil de consumo. Em todos os casos, as informações coletadas poderiam ser complementares aos modelos de escoragem já existentes ou poderiam ajudar a compor um cadastro positivo, em especial, para a baixa renda, que, em geral, não tem histórico de crédito.

Portanto, os exemplos e estudos aqui apresentados evidenciam que a inovação é crucial para construção de um sistema financeiro inclusivo. Evidentemente, a adoção de inovações demanda investimentos expressivos e continuados por parte das instituições envolvidas. Prova disso é a experiência exitosa do Banco do Nordeste, principal instituição de microcrédito produtivo do Brasil.

A despeito dos desafios, inclusão financeira e redução de juros não são escolhas mutuamente excludentes. A inovação pode tornar concreta a preocupação com a sustentabilidade nos negócios e com o futuro do país.

Lauro Gonzalez é professor de Finanças da EAESP-FGV e coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças da FGV

Veículo: Valor – 03/05/2011