Afetado bruscamente pela redução do crédito durante a crise financeira global, o setor produtivo brasileiro, com ênfase nas empresas de menor porte, ainda sente os efeitos do recuo dos agentes financeiros no período, que diminuíram a disponibilidade dos recursos voltados para financiamento. A obtenção de crédito para investimentos em expansão é, hoje, um dos principais problemas das pequenas e médias empresas no país.
Se o crédito e o custo do dinheiro para consumidores já dão sinais de que estão voltando aos níveis anteriores à crise de 2008, o mesmo não se observa entre as pessoas jurídicas. Entre janeiro e setembro, a variação total da oferta de crédito para empresas foi de 4,8%, nos números do Banco Central (BC). No segmento de pessoas físicas, chegou a 15%.
Além disso, as empresas ainda se deparam com o custo de capital elevado. Depois de bater nos 18% no primeiro semestre, o spread bancário (taxa que representa a diferença entre o que os bancos pagam para captar recursos no mercado e o juro cobrado dos clientes) caiu para 17,7% em setembro. Mas ainda está distante dos 13% de setembro de 2007 e dos 14,7% de junho de 2008. O ritmo lento da retomada preocupa as empresas.
“Estamos com receio de que no segundo semestre, diante dessa situação de crédito apertado e juro mais alto, presenciemos o mesmo que vimos no primeiro semestre, quando o comércio cresceu 8%, mas a pequena e média indústria tiveram seu faturamento reduzido em 6%”, diz Milton Antônio Bogus, diretor-titular do departamento da micro, pequena e média indústria da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Segundo Bogus, apesar da melhora verificada no custo do dinheiro e na disponibilidade de recursos, o panorama ainda não é o ideal para o setor.
Uma pesquisa recente do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), feita com companhias de menor porte e com menor poder de fogo para negociar taxas e prazos, mostrou que as empresas com faturamento de até R$ 100 mil ainda consideram os juros elevados e os recursos escassos, apesar da recuperação verificada em 2009. Na avaliação de Rogério Cesar de Souza, economista do Iedi, os empresários precisam de duas coisas básicas para recuperar as perdas registradas durante a crise a fim de poder avançar – ter dinheiro a um custo viável e ter um bom prazo de financiamento.
“Quem hoje está apresentando essas condições são os agentes financeiros públicos, como o BNDES e os bancos oficiais”, diz. Para o economista do Iedi, existe essa percepção e uma agenda positiva por parte do governo, mas é preciso que o setor privado também abra mais linhas para as indústrias. Ao sugerir de forma enfática que o Banco do Brasil (BB) e a Caixa Econômica Federal (CEF) reduzissem seus juros nas operações de empréstimos recentemente, o governo tentou fazer com que as instituições privadas também cortassem suas taxas. Mas não foi isso o que se verificou.
Outro ponto que dificulta a chegada de mais crédito até o segmento industrial é o prazo. A falta de financiamento de longo prazo é quase um problema crônico no Brasil e continua sendo o grande desafio da economia brasileira. “A instabilidade sempre funcionou como uma trava para a oferta de crédito de longo prazo no Brasil. A chegada do câmbio flutuante e a implementação de metas de inflação com o Plano Real permitiram um aumento nos prazos de financiamento para empresas. Mas ainda está distante do ideal”, avalia Rubens Sardenberg, economista-chefe da Federação Brasileira de Bancos (Febraban).
A crise financeira internacional interrompeu o movimento de alongamento de prazos que vinha sendo posto em prática pelos credores. “Para as empresas, em especial para aquelas que não tinham acesso às linhas de crédito do mercado externo, o momento era favorável”, diz o economista da federação dos bancos. “Uma das grandes questões que se tem hoje no Brasil é como se pode alongar os prazos dos financiamentos para pequenas e médias indústrias”, avalia Sardenberg. Isso porque, durante os anos de inflação, os bancos desenvolveram mecanismos de indexação e encurtaram os prazos de suas linhas de crédito.
“Neste momento, o que poderia ajudar a indústria são os recursos do BNDES, uma porta para o crédito”, afirma Rogério Souza, do Iedi, para quem o banco de fomento ainda é um dos poucos canais para empresas conseguirem empréstimos com juros menores e prazos mais elásticos. No primeiro semestre de 2009, as consultas feitas ao banco para novos investimentos cresceram 40% comparadas a igual período de 2008, em um total de R$ 111,7 bilhões. No acumulado do ano, até setembro, as liberações do banco avançaram 58% em relação ao mesmo período de 2008, somando R$ 96,9 bilhões.
O setor industrial ficou com 51% dos recursos, no total de R$ 50,2 bilhões, que representam um avanço de 97% sobre o ano passado. Em outubro, os desembolsos já superaram R$ 100 bilhões, valor considerado recorde pela instituição. O BNDES deve encerrar 2009 com um total de recursos liberados de R$ 130 bilhões. Em 2008, foram R$ 90,8 bilhões.
Segundo informa Cláudio Bernardo de Moraes, superintendente da área de operações indiretas do BNDES, o setor de infraestrutura é o que mais tem demandado recursos. Moraes confirma que o BNDES deve receber um aporte de R$ 100 bilhões vindos do Tesouro para acelerar as operações de crédito.
Até meados de 2010, o BNDES deve aumentar ainda o valor máximo para contratação do cartão BNDES, de R$ 500 mil para R$ 1 milhão. O pedido, segundo Moraes, partiu da Associação Brasileira da Indústria de Café (Abic) e tem o apoio da Confederação Nacional da Indústria (CNI). “É um setor que precisa de muitos insumos e é grande empregador de mão de obra”, diz Moraes.
O cartão, que funciona em moldes semelhantes a um cartão de crédito, é um instrumento que permite às pequenas e médias empresas com faturamento de até R$ 60 milhões anuais financiar a compra de máquinas, equipamentos e veículos com prazo de até 48 meses, sem carência, e a um custo inferior a 0,97% ao mês. Em 2009, o cartão BNDES deve fechar com um total de R$ 8,840 milhões de desembolsos. Em 2008 foram R$ 8,45 milhões. “Deveremos atingir 75 mil operações com o cartão, com um tíquete médio de R$ 12 mil a R$ 15 mil”, explica Moraes.
O aumento das operações com o cartão representa um incremento de 35% sobre as operações do ano passado. “O custo de capital para quem tem acesso ao BNDES é bom, mas é preciso ter um bom relacionamento com o agente financeiro, no caso os bancos que repassam os recursos para as empresas”, avalia Julio Gomes de Almeida, professor da Unicamp e ex-secretário de Política Econômica. Já o custo do capital para empresas que não têm acesso ao BNDES é alto, afirma o superintendente.
“A empresa que tem acesso ao BNDES paga na média, seja na linha de recursos diretos ou indiretos, em torno de 4% até 4,5% ao ano. Em termos internacionais de países emergentes como a China é uma taxa alta, mas para o padrão brasileiro é uma taxa confortável.” Entre setembro de 2008 e setembro de 2009, o saldo das operações voltadas às empresas ficou 4,8% maior apenas, segundo o Banco Central. Nota de crédito de setembro do BC mostra que houve um aumento concentrado em capital de giro e uma queda das linhas externas.
Sem uma postura mais ativa por parte do governo, a Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) decidiu arregaçar as mangas. Para melhorar as condições de crédito da indústria, iniciou um trabalho junto aos bancos e também ao BNDES. “Temos atuado com foco no spread e aumento das garantias”, diz Milton Bogus. Segundo ele, já houve uma melhora junto aos bancos oficiais, com redução das taxas especialmente para a linha de capital de giro, uma das mais procuradas por empresas.
Entre setembro de 2008 e setembro de 2009, as operações de capital de giro registradas pelo BC cresceram 32,2%, com mais de R$ 400 milhões liberados pelos bancos públicos e privados. “Temos realizado vários eventos e assim conseguido vários financiamentos para pequenas e médias empresas”, conta.
Um dos pontos nos quais a Fiesp tem trabalhado são as linhas de financiamento com lastro no Fundo Garantidor de Operações (FGO), voltadas especificamente para as micro e pequenas empresas. Em novembro, a Caixa Econômica Federal (CEF) aderiu ao FGO para oferecer crédito a pequenas empresas com faturamento até R$ 15 milhões por ano. Serão R$ 200 milhões para os empréstimos lastreados pelo fundo garantidor, a um custo até 30% menor do que as linhas tradicionais de crédito. “Essas ações têm gerado bons resultados”, diz Bogus, acrescentando que, hoje, a Fiesp tem um serviço para atender empresas com oferta de crédito de cinco bancos, mais o BNDES. As ações estão em andamento desde agosto.
Em 2009, até o mês de setembro, do saldo total de operações de crédito liberadas para empresas, 42,4% eram de linhas de capital de giro. Em 2008, essa modalidade representava 34% do total de recursos emprestados. As operações de leasing e aquisição de bens representavam, até setembro, 14% dos negócios. Percentual inferior ao de 2008, quando essa linha registrou uma participação de 16% no total de crédito liberado.
As linhas de adiantamento de contrato de câmbio e repasses externos participaram em 2009, nos primeiros nove meses do ano, com 11% – também inferiores aos 15% de 2008. Outra queda na participação veio da conta garantida. Em 2009 ela chega a 9,75%, enquanto em 2008 era de 11%, segundo levantamento efetuado pelo Banco Central.
Em 2009, até o mês de setembro, a média diária de concessões para empresas na linha capital de giro somou R$ 907 milhões. Para a linha conta garantida a média somou R$ 1,345 bilhão; para desconto de duplicatas, R$ 388 milhões; para adiantamento de contratos de câmbio, R$ 252 milhões.
Na avaliação de Rubens Sardenberg, da Febraban, a questão dos spreads, que ainda estão nos patamares da época em que a crise internacional começou, é um problema maior justamente entre as pequenas e médias empresas que não tomam recursos na bolsa de valores nem no mercado externo. Ao longo de 2008, o Banco Central subiu os juros pautado no ritmo de crescimento da economia interna acima de sua capacidade de oferta, preocupado com a volta da inflação. Com a crise, as taxas subiram por conta do maior risco avaliado pelos credores com a alta da inadimplência.
“Acho que progredimos muito no Brasil se olharmos o crédito desde o Plano Real, especialmente com aumento de alguns prazos, ainda que seja apenas para a linha de capital de giro”, diz Sardenberg. O economista lembra que o volume de crédito também aumentou. “No começo do ano 2000, representava 24% do Produto Interno Bruto (PIB ) brasileiro, hoje está em mais de 40% do PIB.” Em 2002, o volume de crédito era de R$ 300 milhões. Hoje, soma R$ 1,3 trilhão. “Temos de pensar que é R$ 1 trilhão a mais em recursos disponíveis para financiar consumo e investimentos.”
Sardenberg lembra que nesse período ainda surgiram alternativas para as empresas como o mercado externo, que há algum tempo se reabriu para as companhias brasileiras na forma de lançamento de títulos, uma alternativa de financiamento, de eurobônus, além de melhora do mercado de capitais interno, com os lançamento de ações, os IPOs. “Esse quadro vem maturando e se olharmos até o começo da crise internacional estávamos em um processo natural de melhora no financiamento ao consumo para bens duráveis e não duráveis, de ampliação dos prazos e de melhora do sistema de garantias para alguns segmentos. Com a crise, todo esse processo foi interrompido”, explica.
O problema é que, ao contrário do financiamento ao consumo, que nos últimos meses devolveu toda a perda registrada durante a crise, no caso das empresas isso não ocorreu. “Os spreads ainda estão altos como à época da crise e acho que há um problema maior para as pequenas e médias empresas, um setor que ainda não voltou à normalidade e que estava no processo de melhoria também”, diz o economista.
Na avaliação de Sardenberg, a recuperação desse setor deverá demorar um pouco mais por conta do risco. “É preciso lembrar que a crise trouxe à tona a questão do risco, que foi mais percebido pelos bancos”, diz. E esse risco, afirma, foi maior para quem tinha menos garantias a oferecer, em geral as pequenas companhias.
Segundo Sardenberg, uma pista de que houve uma piora da situação de crédito para o setor produtivo composto de pequenas e médias empresas está na última nota de crédito do Banco Central. As operações com tíquetes maiores passaram a crescer mais, durante e após a crise financeira internacional, do que as operações com tíquetes mais baixos. Entre os meses de setembro de 2008, no auge da crise global, e agosto de 2009, o saldo das operações de crédito com valores até R$ 100 mil cresceu 9,6%, enquanto as liberações de crédito com valor acima de R$ 10 milhões subiram 32,9%.
Os números ilustram também o comportamento de grandes empresas que tomavam recursos no exterior e que, na crise, com a queda da oferta, se voltaram para o mercado interno, expulsando as pequenas empresas do crédito. O crédito total às empresas aumentou em 15,3%. Para o economista-chefe da Febraban é preciso que o governo encontre novas estruturas de funding para financiar empresas, uma vez que uma redução mais acentuada dos juros, diz, ainda estaria distante.
A queda dos juros, uma demanda antiga do setor industrial, poderia, segundo avaliação da Fiesp, equacionar parte do problema de crédito às empresas. Mas envolve mudanças. De acordo com o economista da Febraban, “o Brasil tem uma política fiscal expansionista e uma queda dos juros exige uma política fiscal responsável. O país precisa de uma política fiscal que gere mais superavit para que o governo tenha condições de fazer, então, um corte maior na taxa básica de juros, com impacto nas taxas derivadas da Selic, aquelas cobradas nos empréstimos”, diz. Sem essa política fiscal mais responsável, menos onerosa, afirma Sardenberg, o Brasil continuará amarrado a juros elevados.
Mesmo com a Selic na casa dos 8,75% ao ano, seria necessário um novo corte para impulsionar o crédito às empresas, na opinião de Julio Gomes de Almeida. “Salvo para alguns setores, o mercado de ações e o mercado de títulos privados, que permitem às empresas levantar recursos a um custo inferior ao crédito tomado em bancos, não são fontes de financiamento que promovam uma redução significativa do custo de capital”, explica Almeida.
O professor da Unicamp diz que o governo acertou em liberar o depósito compulsório às instituições financeiras na época da crise, para que o dinheiro pudesse ser direcionado ao crédito. Mas errou, em sua avaliação, ao não exigir, em contrapartida, um aumento do crédito por parte dos bancos. “Teria sido uma medida pertinente na época exigir que o dinheiro do compulsório fosse usado no crédito às empresas”, diz.
Para o economista e consultor Roberto Troster, além da questão macroeconômica, da política monetária adotada pelo governo e da cunha fiscal bancária elevada, embutida no spread, pontos que encarecem o crédito para o setor produtivo, outra razão eleva o custo do dinheiro para pequenas e médias empresas no Brasil: a estrutura do mercado financeiro, que não é concorrencial e, portanto, dificulta qualquer redução mais efetiva dos juros.
“O governo deveria exigir das instituições financeiras que precificassem o risco dos tomadores de crédito na hora de conceder um empréstimo. O banco não pode cobrar qualquer taxa ou a mesma taxa de todas as empresas, é preciso que elas sejam fixadas e aplicadas com base em riscos diferenciados”, afirma o consultor.
Outro ponto apontado por Troster como fator que pode para forçar a queda dos juros para o segmento de empresas é o Banco Central adotar mais transparência nas estatísticas referentes ao crédito bancário. “É necessário que as informações sobre crédito sejam mais claras, mostrem quanto a pequena empresa paga pelo dinheiro emprestado, quanto a grande paga, ter dados por produto de crédito, por fatia de operação e por instituição financeira”, explica.
Veículo: Valor 25/11/2009