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Crédito: Em seis anos, mais de cem empresas levantaram recursos com emissões para financiar a expansãoBolsa aciona a transformação mais radical
Quando resolveu criar uma empresa de softwares em 1983, em plena década perdida, inspirado na chegada dos computadores pessoais ao país, Laércio Cosentino, então um estudante de engenharia, não teve opção a não ser recorrer a algumas economias. E essa foi a regra durante boa parte da história da empresa, hoje entre as maiores fabricantes de softwares de gestão do mundo.
O grande salto da Totvs deu-se nos últimos dez anos e, não por acaso, coincidiu com uma verdadeira revolução no acesso ao capital para empresas do país. Pode-se dizer que sua trajetória é quase uma síntese dessa transformação.
Em cada estágio dela, que a levou a decuplicar de tamanho de 2001 a 2009, saindo de um faturamento de R$ 100 milhões para marcar mais de R$ 1 bilhão no ano passado, a Totvs fez uso das diversas fontes de financiamento que passaram a se abrir para as companhias do país.
Num primeiro momento, Cosentino encontrou as portas das agências bancárias fechadas, principalmente para a fabricante de um produto tão etéreo como um programa de computador. “Os banqueiros não conseguiam ver parque de máquinas, nem os produtos saindo da linha de produção”, diverte-se um aliviado José Rogério Luiz, vice-presidente executivo e financeiro da Totvs.
O primeiro impulso veio em 1999, quando o fundo de private equity Advent, um dos primeiros estrangeiros a olhar com mais atenção para o Brasil, resolveu investir na empresa. O fundo saiu de cena em 2005 com 100% de retorno sobre seu investimento e foi a vez de a companhia receber um aporte do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, que lhe permitiu fazer a aquisição da concorrente Logocenter.
Àquela altura, já fazia alguns anos que a então Microsiga, nome original da empresa, namorava a possibilidade de vender suas ações a investidores e vê-las negociadas na bolsa de valores para ganhar a escala fundamental a uma empresa de software. Sempre que o mercado de capitais brasileiro ensaiava uma decolagem, todo mundo lembrava logo da Microsiga.
A acalentada abertura de capital veio finalmente em 2006, com a captação de R$ 460 milhões, sendo 70% na forma de aumento de capital para reforçar o caixa da empresa.
A partir daí, nada mais deteve a Totvs. Com o dinheiro dos investidores, ela comprou a RM, na época a terceira maior empresa de software de gestão da América Latina e, já consolidada como uma das maiores do mundo; em julho de 2008, anunciou a aquisição da concorrente Datasul.
Dessa vez, a compra foi financiada com uma emissão de debêntures e, mais uma vez, a participação do BNDES. Sétima maior empresa de software de gestão do mundo, hoje dinheiro não é problema para a Totvs, que se financia tanto no mercado de capitais, emitindo debêntures, quanto nos bancos, fazendo leasing de máquinas e equipamentos.
Os avanços ocorridos no mercado de capitais brasileiro nos últimos anos foram essenciais para a decolagem da Totvs.
Proporcionados por melhorias no cenário macro e também no microeconômico, destaca-se hoje a maior disponibilidade de crédito na economia, que pulou de 27,7% do PIB, em 2000, para 45% do PIB em 2009 e deve fechar 2010 em torno de 50% do Produto Interno Bruto.
O avanço consistente que se observou principalmente a partir de 2004, com taxas de crescimento que chegavam a 40% dependendo da modalidade de empréstimo, só esfriou com a crise econômica no ano passado.
Mas para 2010 bancos e economistas estimam que o bolo total de crédito na economia crescerá entre 20% e 25%. A evolução tem sido espantosa, mas ainda deixa o Brasil bem atrás dos EUA, com 187% do PIB em 2008 ou mesmo de outros países emergentes, como China, 123%, ou Índia, 78%.
Foi o crédito, talvez, o maior responsável por transformar a classe C na locomotiva do consumo nos últimos anos. Ao lado do financiamento de veículos, a criação da modalidade de crédito consignado, com as prestações descontadas diretamente na folha de pagamento do funcionário ou do benefício do aposentado, operou uma pequena revolução no segmento para pessoas físicas.
O risco reduzido para as instituições financeiras derrubou as taxas de juro cobradas nessas operações e tornou o crédito acessível a uma camada da população de renda mais baixa que antes mantinha distância dos financiamentos. Em poucos anos, o consignado explodiu no país, tornando-se a principal modalidade de empréstimo para pessoas físicas nos bancos, com um estoque de R$ 108 bilhões ao fim de 2009.
Hoje, o Brasil exibe algumas das maiores taxas do mundo de crescimento do uso de cartões de crédito e débito. Estima-se que em cinco anos o país poderá ter uma base de 800 milhões de cartões emitidos. Praticamente quatro plásticos para cada habitante do país.
No front do crédito à pessoa física, todas as apostas agora recaem sobre o imobiliário, que ainda atinge proporções tímidas no Brasil. Hoje, a modalidade corresponde a apenas 3% do PIB, contra índices que variam de 20% a até 40% em países emergentes e chega aos 100% nos desenvolvidos.
No mundo desenvolvido, as hipotecas respondem por cerca de metade do mercado de crédito e, por aqui, espera-se um crescimento exponencial que, ao fim, deverá elevar o Brasil a patamares compatíveis com os demais países desenvolvidos e em desenvolvimento em termos de penetração do crédito.
Pelas contas da Abecip, a associação de entidades de crédito imobiliário e poupança, o estoque de crédito imobiliário, hoje em R$ 100 bilhões, poderia chegar a R$ 1 trilhão nos próximos dez anos.
Mas veio da bolsa de valores, a partir de 2004, a transformação mais radical da década no cenário de acesso ao capital. “A grande novidade dos últimos dez anos no Brasil foi o mercado de capitais”, diz o economista Claudio Haddad, diretor-presidente do Instituto Insper de Ensino e Pesquisa. “O mercado de capitais foi uma revolução. Como o país iria explorar o pré-sal dez anos atrás? Como uma empresa como a OGX ou as do setor imobiliário iriam levantar os recursos que conseguiram?”, concorda Setubal. Nos últimos seis anos, mais de 100 empresas, a maioria delas desconhecida até então, levantaram recursos na bolsa para financiar seus projetos de crescimento.
Somente em ofertas primárias, ou seja, captação de dinheiro novo, foram R$ 116 bilhões no período. Em 2007, quando o mercado de ações atingiu seu auge, foram levantados R$ 33 bilhões, o dobro dos R$ 16 bilhões desembolsados pelo BNDES naquele ano.
Além da estabilidade da economia, a existência de regras modernas de governança corporativa na bolsa, que haviam sido criadas no ano 2000 e permaneceram dormentes por quase meia década, prepararam o terreno para o que viria.
Os investidores se dispuseram a pagar prêmios para colocar seu dinheiro nas companhias que aderissem às regras do chamado Novo Mercado e os recursos captados na bolsa passaram a alavancar a construção de fábricas, a compra de aviões, a concessão de crédito e grandes aquisições.
A face invisível do desenvolvimento do mercado de capitais talvez tenha igual relevância, principalmente no futuro do país. Atrás da horda de companhias que já conquistou seu lugar na bolsa, há um batalhão de pequenas empresas almejando ser a Natura, a Localiza ou a Totvs de amanhã.
O processo de formalização da economia é inegável, ao mesmo tempo em que se criou um grande estímulo para investimentos na economia real. “Vejo esse fenômeno todos os dias aqui na Endeavor [organização sem fins lucrativos que incentiva o empreendedorismo], os empreendedores hoje querem crescer suas empresas e depois abrir o capital”, diz Haddad.
Numa escala menor, os fundos de private equity têm exercido papel semelhante ao do mercado de capitais para uma classe de empresas de tamanho mais reduzido e que ainda não estão prontas para a bolsa.
A grande revolução do crédito e do acesso a capital no país está dada. Daqui para a frente, as mudanças devem ser menos impactantes, embora o processo evolutivo continue. Mas ainda assim persistem falhas importantes. Os spreads bancários, ao redor de 24 pontos percentuais, ainda estão muito acima da média mundial, de 5 pontos percentuais, segundo dados do Fórum Econômico Mundial.
Faltam alternativas ao BNDES como fonte de financiamento de longo prazo para investimentos e os títulos de dívida privada ainda não encontram espaço junto ao grande público, como ocorre nos EUA, onde o investidor comum coloca suas economias em papéis de empresas e não só do governo.
Com todo o avanço que houve desde 1983, se fosse criada hoje, talvez a Totvs ainda encontrasse dificuldades semelhantes para se firmar em seus primeiros anos de vida. O crédito a micro e pequenas empresas é uma das maiores falhas do sistema brasileiro, aponta Bráulio Borges, economista-chefe da consultoria LCA.
Faltam também os chamados investidores anjo (venture capital), aqueles que arriscam seu dinheiro em negócios embrionários. “Quem vai começar do zero ainda tem que contar com o dinheiro da família e dos amigos”, diz Haddad. Mas para empresas como a Totvs já não existem limites, nem de capital nem de fronteiras.
Veículo: Valor 03/05/2010