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A Sadia, a Aracruz e o dever de “disclosure”

Os acionistas da Sadia tiveram até o dia 5 de janeiro para manifestar interesse em figurar como litigante principal na ação de classe (“class action”) promovida contra a companhia. O escritório encarregado da ação cobra US$ 365 milhões em prejuízos causados por aplicações em derivativos de câmbio, além dos decorrentes da queda de 38% no valor das ações da empresa. No mesmo comunicado, os advogados informam sobre uma ação semelhante promovida contra a Aracruz Celulose. A firma americana de advocacia se apresenta como especializada em litígios complexos envolvendo valores mobiliários e foi criada a partir de uma cisão em um dos maiores escritórios de defesa de minoritários dos Estados Unidos. Os dois fundadores da firma deixaram tal escritório no rastro de um processo por fraude, fraude postal e corrupção promovido por uma promotora federal. Uma das principais acusações foi a de que eles ofereciam dinheiro e participação em honorários advocatícios para que potenciais clientes promovessem ações.

 O objeto desse artigo não é o de examinar a conduta desses escritórios, mas sim o de discutir, de uma perspectiva menos simplista, os desdobramentos da apelidada “crise do subprime” brasileira. O simples registro de prejuízos em operações de hedge cambial não implica em falha dos administradores ou qualquer tipo de responsabilidade. Se em alguns casos existe uma evidente quebra do dever de cautela e do dever de informar, em outros casos tivemos uma mera conseqüência do curso dos negócios, um prejuízo que deveria ser suportado por quem assumiu os riscos.
 
O principal argumento dos acionistas nessas ações é o de que as empresas falharam em comunicar ao mercado o risco a que estavam expostas. O raciocínio é o de que os investidores, se informados “ex ante” do risco, teriam preferido investir seu dinheiro em outro lugar. Ainda segundo os advogados, as informações financeiras apresentadas nos balanços através de técnicas de “value at risk” não forneciam um panorama claro do risco. Em resumo, a questão a ser respondida é se os investidores não foram informados e cobram de forma legítima esses prejuízos ou se assumiram o risco e tentam agora, de forma oportunista, recuperar parte das perdas.
 
A discussão em tudo se parece com a questão dos contratos de leasing cambial de 1999. Um dos problemas decorrentes da maxidesvalorização de janeiro de 1999 foi o repasse da correção cambial nas operações de empréstimo e arrendamento mercantil aos tomadores. Foram ajuizadas milhares de ações judiciais tentando obstar ou reduzir esse repasse, com base nos mais diversos argumentos, entre eles a teoria da imprevisão, o princípio da equivalência das prestações e as vedações do Código de Defesa do Consumidor.
 
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) fixou o entendimento de que os prejuízos decorrentes da desvalorização cambial deveriam ser suportados de forma equânime pelas partes. A questão de fundo, entretanto, também é a de se o tomador assumiu ou não os riscos – no caso, da variação cambial. Lembro que, na oportunidade, escrevi um artigo em que, com um exemplo bastante simples, discuti os incentivos por trás da situação. Para poupar os leitores de um texto excessivamente acadêmico, apresento aqui apenas algumas das conclusões daquele trabalho.
 
Antes da decisão do STJ, os casos deviam ser examinados um a um. Embora na maioria das vezes isso gerasse uma grande disparidade de decisões, alguns magistrados poderiam adotar a solução que qualifico como mais eficiente. Em resumo, o juiz deveria considerar que os custos dos empréstimos estavam diretamente ligados aos resultados possíveis. Tanto no caso do leasing como no do hedge cambial, o tomador exigiria condições melhores se soubesse da possibilidade de um resultado negativo – nos dois casos, uma valorização excessiva do dólar. O emprestador, nessa situação, tem incentivos para ocultar informação. Na solução ótima, o juiz deveria avaliar se a parte tinha condições de se informar – se as tinha e não o fez, problema do tomador-, determinando o ressarcimento dos que não podiam se informar e recomendando aos que podiam ir chorar na cama.
 
A decisão do STJ, ao não observar a capacidade das partes de se informarem, gera incentivos para litígios oportunistas dos que assumiram os riscos. No caso das partes levadas a erro pelos emprestadores, o ressarcimento parcial não é útil e fará com que o agente se retire do mercado. Uma solução ruim em qualquer cenário.
 
Uma das críticas possíveis a essa abordagem é a dificuldade em estabelecer se o tomador tinha ou não assumido o risco, qual seria exatamente esse risco e os prejuízos resultantes. No caso dos contratos de hedge, entretanto, estamos falando de valores mobiliários em um mercado altamente líquido. É relativamente fácil estabelecer quais eram as probabilidades de cada cenário com base nos mercados futuros e avaliar se as condições do empréstimo eram justas. Também é possível aferir quais notas das demonstrações financeiras eram informativas e quais não eram – a suposição bastante simples e conservadora de uma distribuição normal das perdas, no sentido estatístico, torna o prejuízo de uma das companhias perfeitamente compatível com as notas de seu balanço. Temos, ademais, duas ou mais empresas submetidas às mesmas condições e que seguiram estratégias bastante diferentes com resultados também diferentes. Embora essa abordagem estatística possa parecer nova no Brasil, nos Estados Unidos ela é bastante comum, existindo até algumas publicações acadêmicas na área.
 
Em um teste preliminar com dados amplamente disponíveis pude constatar que, enquanto uma das empresas poderia ser acusada de faltar ao dever de informar e ser responsabilizada pelos prejuízos sofridos, a outra parece estar escudada em uma forte evidência econométrica de ter agido no melhor interesse de seus acionistas. A ampla disponibilidade de dados permite assegurar quem exerceu plenamente a avaliação do curso dos negócios (“business judgment”), cumpriu devidamente os deveres de informar e está apenas sendo vítima de um litígio oportunista. Aqui o regulador e o julgador devem, para chegar ao resultado socialmente ótimo, evitar a tentação de estabelecer uma regra única como no caso da decisão do STJ sobre o leasing e olhar cuidadosamente cada caso. Quem assumiu o risco deve pagar, quem faltou com o dever de informar também.
 
Ivan César Ribeiro é advogado e mestre em economia de empresas pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-graduando em direito pela Universidade de Yale.
 

Veículo: Valor Econômico