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O novo código civil e as relações contratuais

O novo Código Civil, que entrará em vigor em 11 de janeiro de 2003, traz profundas e inquietantes mudanças no regime jurídico, aplicável às relações contratuais, que passaram, até o momento, despercebidas. O reconhecimento da função social dos contratos, a crescente limitação da liberdade de contratar e as normas restritivas impostas, como regra geral, fazem parte de uma filosofia legislativa e de princípios que já influenciou a Constituição Federal de 1988, o Código de Defesa do Consumidor, a Lei de Crimes Ambientais, dentre muitas outras. Essa tendência irrefreável agora atingiu a norma das normas do direito privado: o Código Civil.

Alguns institutos, adotados pelo novo código, são inovações que trarão expressivas mudanças nas regras de direito contratual: os institutos da lesão e do estado de perigo, a banalização da desconsideração da personalidade jurídica, a possibilidade de resolução contratual por onerosidade excessiva e a nova limitação na liberdade de contratar, que fica subjugada à função social dos contratos.

A lesão, como vício da vontade, ensejadora da anulabilidade dos contratos, prevista no art. 157 do novo código, permite que um negócio seja desfeito, por decisão judicial, se “uma pessoa, sob premente necessidade, ou inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta”. Em outras palavras, um contrato poderá ser anulado, por exemplo, na hipótese de comprovada desproporção entre o valor pago e o valor real de mercado de um bem adquirido, desde que demonstrada a inexperiência ou premente necessidade do vendedor. Esse instituto, pela insegurança e instabilidade que gera, havia sido abolido da legislação brasileira pelo Código Civil revogado. Agora, ele volta a assombrar os contratantes, no contexto de um sistema jurídico pautado por princípios e regras vagas, gerais e inespecíficas.

Caberá aos tribunais, diante da falta de critérios objetivos que delineiem o âmbito de aplicação do instituto da lesão, a relevante tarefa de definir o que caracterizaria a desproporcionalidade da prestação, a inexperiência do contratante e a sua premente necessidade.

O estado de perigo, na mesma linha, permite a anulação de negócios, sempre que um dos contratantes assumiu obrigação onerosa “premido de necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano, conhecido pela outra parte”. Em vista dessa nova regra, quem, por exemplo, comprar bens da família de um seqüestrado, corre o risco de ver o negócio desfeito, se for considerado excessivamente desvantajoso para o vendedor.

Os bens dos sócios e administradores passam, diante da regra geral do art. 50 do novo Código Civil, a responder por dívidas da sociedade, agora de qualquer natureza, desde que seja comprovado que houve abuso da personalidade jurídica, caracterizado pela “confusão patrimonial” ou “desvio de finalidade”. A confusão patrimonial será configurada quando não houver a devida separação entre os bens dos sócios e da sociedade. O desvio de finalidade, por sua vez, ocorrerá quando os sócios ou administradores fizerem uso da pessoa jurídica para fim diverso dos interesses da própria sociedade. Essa regra abrangente, antes adstrita a situações muito específicas (relações de consumo, direito da concorrência, responsabilidade por dano ambiental, responsabilidade do administrador de empresas pela prática de atos ilícitos, dentre outras) e a esporádicas decisões judiciais, agora ostenta o status de norma geral, aplicável a todas as relações privadas.

O novo Código Civil também normatizou a possibilidade de uma das partes requerer a resolução ou revisão dos termos de um contrato, “se a prestação de uma parte se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis”. Trata-se da conhecida teoria da imprevisão, que, embora muito prestigiada pela doutrina, tinha aplicação tímida pelos tribunais. Há no Código de Defesa do Consumidor regra semelhante, que tem sido invocada pelos tribunais de todo o País para, por exemplo, justificar a inaplicabilidade da correção cambial de contratos de leasing, celebrados antes da desvalorização do real de janeiro de 1999.

Sem dúvida, diante do novo código, as hipóteses de aplicação da teoria da imprevisão irão multiplicarse. Os contratos de execução duradoura, como os contratos de leasing, serão alterados e ajustados, por decisão judicial, diante de uma inesperada quebra da proporcionalidade das prestações e da conseqüente onerosidade excessiva das obrigações contratadas para um dos contratantes. Mudanças bruscas na economia e no mercado serão, por certo, argumentos que ensejarão um grande número de demandas.

Igualmente merecem destaque o art. 421 e o parágrafo único do art. 2.035 do novo código. Segundo o art. 421, “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Já o parágrafo único do art. 2.035 estabelece que “nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”. A interpretação desses preceitos leva à seguinte constatação: os contratos ou cláusulas contratuais considerados em de- sacordo com o que se entender que venha a ser a sua função social serão reputados nulos e inválidos. Mas a lei não esclarece o que deve ser interpretado como função social do contrato. A expressão é tão ampla e elástica que poderá ser invocada, de boa ou má-fé, contra praticamente qualquer dispositivo contratual. Resta aguardar a interpretação dos tribunais sobre conceito tão genérico, que põe sob risco de invalidade um sem número de relações obrigacionais, disseminando a insegurança.

A taxa máxima de juros também foi alterada. O limite de 12% ao ano fixado pelo Código de 1916 foi substituído pela “taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional”, atualmente a Selic. De acordo com os índices atuais, essa mudança traz um expressivo acréscimo aos juros legais. Essa alteração não afetará os contratos de leasing, porque, segundo entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça, a eles são aplicáveis as normas especiais que regulam as operações financeiras. A nova regra beneficiará, por exemplo, o comércio em geral e as administradoras de cartões de crédito, que atualmente estão, diante da inadimplência do cliente, adstritas a juros limitados ao percentual de 12% ao ano, como vêm decidindo os Tribunais.

As inovações, mencionadas neste artigo, são demonstrações contundentes de que o novo Código Civil abandonou a perspectiva individualista do código anterior, produto da concepção liberal que predominava na época.

A nova legislação, em sentido diverso, dá grande ênfase aos aspectos sociais do direito privado, impondo relevantes restrições à liberdade de contratar e ampla proteção à parte mais fraca. Esse é um passo decisivo na consolidação de uma ordem jurídica que desfavorece o individual para privilegiar interesses sociais e coletivos. O Código Civil e a Constituição Federal estão agora afinados. A nova legislação também aumenta, substancialmente, a importância e a complexidade da função dos magistrados. Isso porque, em vez de artigos detalhados e casuísticos, adota a moderna estrutura legislativa de fixar princípios gerais e subjetivos, a serem delineados e interpretados pelos julgadores, diante do caso concreto. A insegurança nos negócios, causada pelas severas restrições à liberdade contratual, norteadas por princípios vagos e indeterminados, subsistirá até que a jurisprudência dos tribunais dê o indispensável contorno do novo direito privado brasileiro.

*Ana Tereza Palhares Basilio é advogada do escritório Trench, Rossi e Watanabe